Economia & Mercados
17/12/2020 08:11

Especial: maioria no Brasil, negros não passam de um quinto da liderança em grandes bancos


Por Aline Bronzati e André Ítalo Rocha

São Paulo, 17/12/2020 - O alerta do recém-lançado documentário 'AmarElo. É Tudo Pra Ontem' é uma peça importante - senão o quebra-cabeça inteiro - do desafio da inclusão étnica no Brasil. A urgência de os negros ocuparem espaços que lhe foram negados por tantos anos, defendida no filme pelo rapper Emicida, atravessa diferentes universos e inclui o mercado financeiro. Não há um sequer no comando de bancos no País e a subida de degraus na carreira, ao topo em instituições financeiras, ainda enfrenta barreiras tanto do lado profissional como nas relações diárias.

A participação de negros nos principais bancos privados do Brasil é de cerca de um quarto do total, ainda que respondam por mais da metade da população do Brasil. Nos cargos de liderança, a diferença é maior, como se sabe. Varia de 11% a 19%, em grandes bancos como Bradesco, Santander e Itaú Unibanco. Há cinco anos, era praticamente inexistente. Mesmo o Bradesco, que tem 19% de negros em quadros de chefia, são apenas 6,1% quando se analisa a diretoria. Na prática, é um único representante negro.

Igor Valentim, 37 anos, foi alertado pelos pais sobre os desafios que a vida lhe iria impor desde cedo. "Cara, você vai ter de ser o mais bem arrumado e, se não for, as pessoas não vão te olhar direito. Vai ter de ter diploma disso, daquilo", diz o hoje gerente sênior de dados do Bradesco. Recentemente, ele estampou a lista da revista Forbes de negros brasileiros inovadores. "A cobrança é de largada - e de maneira absurda".

Mesmo depois de "cinco séculos" de desigualdade, como afirma Emicida, no AmarElo, Valentim ainda tem de lidar com o racismo estrutural. Certo dia, ele, com 1,80 de altura e que malha desde os 16 anos, foi para o trabalho vestindo camisa polo. "Está parecendo um segurança", ouviu de um colega. "Não é todo preto que é segurança", respondeu, em mais uma de suas tentativas de educar as pessoas.


Foto: arquivo pessoal - Gerente sênior de dados do Bradesco, Igor Valentim

A recente iniciativa do Magazine Luiza, que criou um programa de trainees exclusivo para pessoas negras reacendeu o debate no Brasil sobre inclusão étnico-racial nas empresas. Quem acompanha o tema de perto diz, porém, que as grandes companhias, embora já tenham despertado para a urgência da questão, estão em graus de maturidade completamente diferentes.

"Algumas empresas entendem que a inclusão étnico-racial é, para a sociedade, uma questão de representatividade e ainda veem isso como algo conectado à imagem. Outras, mais maduras, já entenderam que não se trata só disso e veem que é mais importante ter pessoas negras em cargos de poder e tomada de decisão, entrando na estratégia", diz Ana Bavon, especialista em estratégias de inclusão e gestão das diversidades nas organizações e CEO da B4People Cultura Inclusiva.

Natural de Salvador, Bruno Scaldaferri é um dos 6% dos negros na alta liderança no Santander Brasil. Há 18 anos no banco, começou como caixa e galgou vários degraus até chegar a gerente regional. No ano passado, arrumou as malas e se mudou para São Paulo, para assumir o cargo de superintendente de Diversidade e Inclusão, área que existe desde 2017.

Quando começou na nova função, percebeu que ocupar aquele posto tinha uma importância além do trabalho em si. Era também uma forma de inspirar e motivar os demais funcionários negros. "Nos primeiros seis meses, viajei o Brasil inteiro para fazer palestras. Em um desses eventos, em Brasília, um gerente geral e negro se levantou para falar. Disse, primeiro, que nunca imaginou que alguém com o meu sobrenome (Scaldaferri, de origem italiana) poderia ser negro e, segundo, que a partir dali iria buscar também ser superintendente", diz.

Para que mais negros possam galgar cargos como o de Scaldaferri ou de Valentim - e irem além, a via é investir em ações, mas, principalmente, iniciativas específicas a exemplo do que fizeram o Magazine Luiza, o laboratório Bayer e os norte-americanos JPMorgan e Mastercard, segundo especialistas.

Isso, sem deixar de lado, uma mudança na cultura da organização. "Não adianta atrair talentos negros e a organização ser branca e absolutamente hostil, que desconhece as dores e as realidades de ser um profissional negro em um mercado de trabalho majoritariamente branco", afirma Ana Bavon.

Rede e meritocracia

Os próprios processos seletivos, em si, são um desafio. Um desses para uma vaga em um grande banco, relatado por fontes, que pediram anonimato, o candidato branco tinha se sobressaído ao negro por ter mais indicações, o tal networking, ainda que tivessem idêntica capacidade técnica. Além dessa rede, pesa ainda o viés inconsciente, que é a propensão a escolher pessoas mais parecidas ou com trajetórias similares à de quem está no comando.

É aí que a mudança de cultura pode fazer a diferença.

"Se há dois jovens de 20 anos - um que só estudou, fez cursos lá fora, e outro que não teve as mesmas oportunidades -, e o segundo tiver a mesma produção, provavelmente, tem um potencial muito maior", diz a economista-chefe do JPMorgan no Brasil, Cassiana Fernandez. Em outras palavras, é importante avaliar o caminho percorrido e não apenas o patamar atual do candidato em um processo de seleção. Mais o filme e menos a foto.

Na base de funcionários do Santander no Brasil 25,3% são negros. Há cinco anos, a fatia era de 18% e cresceu como resultado de um trabalho que envolve treinamentos internos, mentorias e programas de trainee mais diversos. O banco reconhece estar longe do objetivo final, que é justamente refletir a sociedade brasileira. "A área que eu comando não era para precisar existir. Eu trabalho para acabar com ela", afirma Scaldaferri. A meta para 2021 é chegar a 30% de negros nos quadros do banco.


Foto: Danilo Tudella/Divulgação - Superintendente de Diversidade e Inclusão do Santander Brasil, Bruno Scaldaferri

O Itaú Unibanco, que tem 22,8% de profissionais negros (ante 18,7% há 10 anos) e 11% em cargos de liderança, também investe em trainees para elevar essas proporções. O processo seletivo para o programa do ano que vem tem 41% de finalistas negros, acima dos 35% entre os semifinalistas. "Pela qualidade, a taxa será ainda maior entre os aprovados", afirma o diretor-executivo de Recursos Humanos do Itaú Unibanco, Sérgio Fajerman.

Em outubro, repercutiu mal uma declaração de Cristina Junqueira, cofundadora do Nubank, que afirmou que uma das dificuldades para contratação de negros era "nivelar por baixo" e por isso a instituição tem investido em capacitação.

Dias depois, ela, teve de pedir desculpas. Por sua vez, o Nubank anunciou uma série de compromissos para elevar a inclusão na instituição. "Hoje, reconhecemos que avançamos muito pouco na pauta racial", afirma o CEO do Nubank, David Vélez, em entrevista ao Broadcast. "Demos um primeiro passo para mudar essa realidade com nosso plano de ação anunciado em novembro."

Para Ana Bavon, as instituições financeiras, em geral, ainda estão muito atrasadas. A inclusão étnico-racial, diz, tem de chegar ao modelo de negócios. "Se 56% de pessoas negras entram no banco para pedir empréstimo, não conseguem, é porque quem atende tem um viés que não ajuda na avaliação do crédito", afirma. "Com bancos que crescem exponencialmente em um País mais excludente, então talvez não tenha tanto interesse em mudar a estrutura".

A diretora executiva do Bradesco, Glaucimar Peticov, responde pela área de recursos humanos, afirma ser importante começar pela base. É ampliando a porta de entrada, defende, que será possível passar ao próximo passo: promover os negros aos degraus mais altos. No Bradesco, a contratação desses profissionais cresceu em média 60% na última década, levando a 27% do quadro. Este ano, os negros foram 33% dos contratados. A participação nos cargos de liderança chega a 19% (que começam com gerentes), mas só 6,1% são da diretoria "por enquanto", diz Peticov. "Não temos metas, mas espero que esses porcentuais cresçam no ano que vem", diz.

O documentário 'AmarElo. É Tudo Pra Ontem' é dividido em três atos: plantar, regar e colher. O universo corporativo (não só o financeiro), figura em sua maioria no primeiro. Assim como inúmeros negros nunca haviam pisado no Teatro Municipal de São Paulo antes do show de Emicida, em novembro do ano passado, o protagonismo negro não chegou ao alto escalão dos grandes conglomerados. "A gente precisa, sim, ocupar esse tipo de espaço, esse tipo de ambiente e por que não todos os ambientes que nos foram negados ao longo da história desse País... Nós vamos devolver a eles o direito de sonhar" - Emicida, personagem e narrador de 'AmarElo'.

Contatos: aline.bronzati@estadao.com ; andre.italo@estadao.com
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