Economia & Mercados
28/02/2023 14:54

Regra Fiscal/Jeferson Bittencourt:Maior parte da credibilidade virá do comprometimento político


Por Simone Cavalcanti e Cícero Cotrim

São Paulo, 27/02/2023 - Comprometimento. Essa é a palavra-chave na avaliação de Jeferson Bittencourt, economista da ASA Investments, para a credibilidade da nova regra fiscal que deve ser apresentada em março pelo governo federal. Ex-secretário do Tesouro Nacional, ele abre hoje a série de entrevistas que o Broadcast traz esta semana sobre as expectativas para os novos parâmetros que devem nortear a gestão das contas públicas visando à sustentabilidade da dívida nos próximos anos.

Para Bittencourt, o nível de despesa a ser estabelecido depende do quanto a sociedade estará disposta a pagar. O economista lembra que o País precisa produzir um superávit primário de 2,5% do PIB para estabilizar a dívida, em um cenário no qual a despesa atinge 19% do PIB e a receita, 18%. "Se a despesa ficar parada neste patamar, muito simplificadamente precisaríamos elevar a carga tributária em 3,5% do PIB nos próximos anos. A sociedade assimila mais R$ 350 bilhões em impostos?", questiona.

Para ele, o teto de gastos não é inflexível. "Não se pode chamar de furo no teto a aplicação de suas próprias cláusulas de escape. De qualquer forma, flexibilidade não é um problema se houver compromisso em se tomar as medidas necessárias para manter a trajetória de ajuste". Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista:



Broadcast: Quais características necessárias para que a nova regra fiscal seja considerada crível?

Jeferson Bittencourt:
A maior parte da credibilidade de uma regra não vem do seu desenho, vem do comprometimento dos políticos em tomar as medidas para cumprir o objetivo que é comum a todas as regras fiscais: manter a dívida em trajetória sustentável, evitar seu crescimento contínuo. Pela nossa experiência e considerando o contexto, para que as regras gerem os incentivos corretos, é fundamental que tenhamos limites para o crescimento da despesa - para evitar que o viés pró-cíclico da despesa cresça quando há mais receitas -, exigências de resultados fiscais - para efetivamente controlar a dívida, e impedir a leniência fiscal via concessão de benefícios tributários -, e medidas de ajustamento caso a trajetória de resultados se desvie do caminho sustentável.

Broadcast: Qual é o ritmo de crescimento real da despesa que a nova regra pode permitir e, com esse nível de expansão, qual é o aumento de receitas necessário para atingir o superávit primário que estabiliza a dívida?

Bittencourt:
Esta pergunta é interessante porque implicaria definirmos qual o tamanho de Estado que a sociedade quer e, do ponto de vista fiscal, também o quanto a sociedade está disposta a pagar para ter este nível de serviço. Em outras palavras, qual o nível de carga tributária que se aceita. Consideremos o nível de despesa sobre PIB permitido pela PEC da Transição, na casa de 19%, e uma visão otimista da receita líquida recorrente, sem eventos atípicos, na casa de 18%. Com o PIB crescendo como o potencial e taxa de juros igual a neutra, o Brasil precisa de um superávit primário de 2,5% do PIB para estabilizar a dívida. Se a despesa ficar parada neste patamar, muito simplificadamente precisaríamos elevar a carga tributária em 3,5% do PIB nos próximos anos. A sociedade assimila mais R$ 350 bilhões em impostos? Os seus representantes no Congresso aprovariam medidas que gerassem esta elevação? Se a resposta for não, precisamos de uma trajetória muito mais comedida de despesa ou tomar os riscos de ter uma dívida crescente.

Broadcast: O governo tem sinalizado que a nova regra vai considerar o crescimento do PIB, mas também defende um arcabouço anticíclico. Como conciliar esses dois fatores?

Bittencourt:
A atuação anticíclica é, conceitualmente, muito importante. Ajuda a suavizar os efeitos dos ciclos econômicos, dá mais horizonte para investimento e estabilidade para o crescimento. Mas os ciclos têm sérios problemas para serem medidos a ponto das métricas serem usadas tempestivamente para definir a política fiscal, principalmente considerando os prazos das nossas regras orçamentárias. A política fiscal muito focada em resultados primários tende a gerar efeitos pró-cíclicos, ou seja, a acentuar as oscilações da economia, o que também não é positivo. Neste sentido, a ideia do teto dos gastos é o melhor arranjo: foca na variável que o governo mais consegue controlar - a despesa - e a mantém em trajetória neutra em relação ao ciclo. Se não atenua as oscilações, não as aprofunda. Mas precisaria ter um maior detalhamento deste papel anticíclico na proposta para fazer um julgamento mais aprofundado.

Broadcast: A defesa de uma política anticíclica, inclusive pelo secretário do Tesouro, Rogério Ceron, remete ao governo Dilma Rousseff. O quanto isso funcionaria desta vez no contexto atual?

Bittencourt:
Para isso funcionar, primeiramente, precisaria superar, no mínimo, os problemas que citei: o nível e o custo da dívida, bem como ter métricas confiáveis e isentas de onde estamos no ciclo econômico. Além disso, precisaria muito critério na adoção e no encerramento de medidas anticíclicas, porque a despesa pública é muito rígida. Adotamos medidas para atenuar eventos econômicos específicos, pontuais, e não conseguimos desfazê-las quando somem os efeitos do evento, independentemente da efetividade das medidas. Dois exemplos: a desoneração da folha foi instituída em caráter temporário em 2011 para atuar sobre um problema pontual no emprego. Foi tornada permanente em 2014. Programada novamente para encerrar em 2021, e novamente prorrogada até 2023. O Pronampe, que foi criado em 2020 no âmbito da pandemia, segue sendo prorrogado, e sua continuidade sempre aparece como solução para novos problemas.

Broadcast: O governo tem falado da necessidade de uma regra mais flexível do que o teto de gastos. É um princípio desejável para o novo arcabouço?

Bittencourt:
Não acho que o teto seja inflexível. É um equívoco pensar que o teto teve de ser flexibilizado para combater a pandemia. A PEC do Orçamento de Guerra não veio para dar flexibilidade ao teto, mas agilizar contratações públicas e solucionar incoerências de regras. As despesas da pandemia foram feitas dentro das regras originais do teto, que previa justamente a flexibilidade para créditos extraordinários, usados em casos de calamidade, como a pandemia e agora com as chuvas no litoral de SP. Não se pode chamar de furo no teto a aplicação de suas próprias cláusulas de escape. De qualquer forma, flexibilidade não é um problema se houver compromisso em se tomar as medidas necessárias para manter a trajetória de ajuste. A flexibilidade, em tese, não é um problema, o que não pode é ter um compromisso frágil com a regra.

Broadcast: Qual a probabilidade de o governo conseguir aprovar a nova regra com um Congresso eleito que tende à direita?

Bittencourt:
Acho que não é a inclinação do Congresso que deve gerar problemas em aprovar a regra fiscal, mesmo com o acordo que tem sido mencionado pelo presidente da Câmara de o Executivo alcançar um quórum de Emenda Constitucional para aprovar esta lei complementar. A regra fiscal sendo colocada em tese, afetando interesses difusos, ou seja, sem apresentar medidas de ajuste específicas, que afetem grupos de interesse organizados, não deve ter resistências intransponíveis no Congresso. Contudo, caso a regra na sua apresentação seja muito leniente com a trajetória fiscal nos próximos anos, e isso gere uma reação muito negativa do mercado, torço que o Congresso tome as rédeas e coloque-a mais fortemente no caminho da sustentabilidade.

Broadcast: Existe a preocupação com a incorporação de princípios da MMT, citada na justificativa da PEC da Transição, na proposta de novo arcabouço? E na política econômica como um todo?

Bittencourt:
A citação da MMT na justificativa da PEC da Transição parece ter sido uma licença poética de algum assessor do Congresso que não foi bem recebida nem pela equipe econômica. Tanto que foi retirada nas versões seguintes. Acho que há, sim, na Fazenda e no Planejamento, o entendimento que, independentemente da dívida pública brasileira ser essencialmente emitida em moeda local, é preciso ter controle dos gastos públicos e da sustentabilidade fiscal, independentemente de fatores monetários.

Broadcast: Do ponto de vista do mercado financeiro, essas ideias que você colocou podem acalmar os ânimos e fazer com que seja possível surfar na onda de um exterior mais ameno?

Bittencourt:
A bem da verdade, às vezes o mercado relativiza muito as coisas. Então pode ser que fique satisfeito com muito menos, se acalme no curto prazo com uma regra muito menos rigorosa, principalmente se o exterior for ameno. Ou seja, poderia ser ao contrário: para aproveitar o exterior ameno, o mercado poderia se contentar com uma regra menos firme do ponto de vista da busca da sustentabilidade. E isso seria plenamente justificável, porque a regra em si não resolve completamente a questão. O que resolve de fato é o compromisso do governo com a austeridade, com o controle da trajetória da dívida e, principalmente, com a adoção das medidas que promovam este o ajuste fiscal. A questão é se, em qualquer cenário externo, o mercado se manterá calmo sem que haja demonstrações claras deste comprometimento.

Contato: simone.cavalcanti@estadao.com e cicero.cotrim@estadao.com
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