Economia & Mercados
29/08/2023 09:32

Especial: rublo digital não contornará sanções ocidentais, mas amplia debate de desdolarização


Por Laís Adriana

São Paulo, 28/08/2023 - A Rússia começou a operacionalizar o rublo digital neste mês em fase de testes no varejo, uma das medidas do Banco Central do país para tentar neutralizar a desvalorização da moeda e contornar sanções ocidentais em um sistema cambial ainda dominado pelo dólar. A medida une a Rússia a outras economias emergentes na vanguarda das moedas digitais, renovando o debate sobre desdolarização.

O rublo digital era projetado há algum tempo, porém, o anúncio de uma regulamentação jurídica viabilizando o início dos testes ocorreu somente em julho e o lançamento no começo de agosto. Como pano de fundo, o governo e o BC da Rússia lidavam com a forte desvalorização do rublo, ao seu menor nível desde março de 2022.

Contudo, analistas observam que o objetivo principal do governo da Rússia pode não ser atingido no curto prazo. Ex-dirigente do BC da Rússia, Alexandra Prokopenko afirmou, em entrevista ao Moscow Times, que não “vê como um rublo digital poderia auxiliar a evitar sanções econômicas”. As operações em blockchain ainda não poderiam solucionar o temor de países parceiros de receber sanções ocidentais ou a deterioração do rublo como moeda soberana, argumentou Prokopenko.

Economista-chefe do Banco Inter, Rafaela Vitória lembra que, em geral, moedas soberanas digitais (CBDC, na sigla em inglês) não agregam ao que as divisas físicas já representam na economia. Logo, os instrumentos de política monetária e seu valor continuam os mesmos. No Brasil, por exemplo, o Drex deve trazer mais operacionalidade para a economia tanto no varejo como no atacado, mas sem substituir completamente o dinheiro físico, que deve continuar circulando, avalia Vitória.

A economista da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Carla Beni compartilha visão semelhante e observa ainda que as sanções trazem maior complexidade para o caso da Rússia. “Não temos como dizer se [introduzir] a moeda digital será efetivo agora, porque é uma ferramenta muito nova e outros fatores devem determinar a compra ou não do rublo”, analisa Beni, destacando como exemplo a alta inflação no país e deterioração da economia por redução na demanda e oferta devido às sanções.

Especialistas consultados pelo Wall Street Journal projetam que a desvalorização do rublo seguirá um “declínio muito lento”, ao contrário da trajetória tradicional de moedas emergentes, e que não deve ser amenizado pelas medidas do BC da Rússia.

Vanguarda das emergentes

Independentemente da sua capacidade de contornar sanções comerciais, o rublo digital chama atenção para o avanço das emergentes no desenvolvimento de CDBCs e reacendeu discussões sobre desdolarização.

Assim como outras CBDCs, a versão digital do rublo permitiria que o BC da Rússia negociasse diretamente com bancos centrais de outras economias, sem recorrer ao sistema cambial SWIFT, do qual foi excluído após o início da guerra contra a Ucrânia. Analista de criptoativos da Empiricus Research, Vinícius Bazan explica que esta é uma estratégia que também “pode ser uma carta na manga” para outros países ao digitalizar suas economias, permitindo que cada nação “consiga implementar sua moeda em outras frentes de comércio internacional que não seja o dólar”.

Sócio-fundador da Fuse Capital, Dan Yamamura observa que as economias emergentes lideram este processo de digitalização, em especial o Brasil, por necessidade de promover maior acessibilidade a recursos financeiros para a população de forma geral e de atrair mais capital - este último tendo em vista a conversão cambial mais fluída. Economista-chefe da Austin Rating, Alex Agostini nota também que esta é “uma tendência global e sem volta pela própria evolução do uso da tecnologia no mercado financeiro”, e que também está sendo estudada por países desenvolvidos como EUA, Europa e Japão.

Uma pesquisa do Banco de Compensações Internacionais (BIS) - o banco central dos bancos centrais - mostrou que países emergentes e em desenvolvimento lideram o dobro de projetos piloto em moedas digitais de varejo e atacado do que seus pares desenvolvidos. A pesquisa do BIS sugere que pode haver 15 CBDCs voltadas ao segmento de varejo e nove para o atacado em 2030.

Para o especialista em criptomoedas da Coindesk, Michael J. Casey, Brasil, Rússia, Emirados Árabes Unidos, Cingapura e China devem liderar este movimento de transição digital e desdolarização, devido aos seus “papéis descomunais no comércio mundial”. Bazan também comenta que os Brics poderiam ter um papel essencial em uma possível desdolarização caso consigam fortalecer o projeto de uma divisa comum - física ou digital - para transações comerciais, porém, ressalta que a redução da posição do dólar seria um processo de muitos anos.

Na última quinta-feira, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) anunciou que o bloco aprovou o desenvolvimento de uma moeda comum, enquanto a China relatou que os países também devem estudar ferramentas e plataformas de pagamento e liquidação em moeda local. Estas medidas, somadas à possível adesão da Arábia Saudita e de outros países exportadores de petróleo ao Brics, podem desafiar a dominância global do dólar e dão ímpeto ao debate de desdolarização, na visão do ING.

Conforto do líder global

Beni, da FGV, lembra que, apesar da movimentação global para reduzir a dependência do dólar, a moeda americana manterá sua posição enquanto os países tiverem a maior parte das suas reservas internacionais em dólar. Agostini, da Austin Rating, acrescenta que uma desdolarização exigiria a criação de um sistema global de pagamentos interligando todas as nações ou a dominação de uma nova moeda forte, ambas possibilidades extremamente remotas, segundo ele.

Para Vitória, do Inter, os EUA não têm motivação ou necessidade para implementar o dólar digital neste momento e podem aguardar enquanto outros BCs avançam no processo, aderindo às CBDCs somente quando a iniciativa mostrar ganho de eficiência. Apesar de estar em fase de estudos, a ideia enfrenta atualmente resistência de alguns dirigentes do Federal Reserve (Fed) e de autoridades políticas americanas. “Não acho que a resistência está no conceito, mas na necessidade”, pontua Vitória.

Já Bazan, da Empiricus, alerta para o risco dos EUA tomarem uma decisão tardia por conta da hegemonia e avalia que, independente da posição atual, o país não terá escolha além de aderir à CBDC em algum momento. “A tecnologia se desenvolve de forma exponencial e pode ser que seja mais rápido do que imaginamos um eventual enfraquecimento do dólar”, destaca.

Contato: lais.almeida@estadao.com
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