Economia & Mercados
04/09/2020 15:31

Se aplicada hoje, PEC do Pacto Federativo acabaria com 1.012 cidades brasileiras


Matéria publicada originalmente às 11h03 de 30/01/2020

Por Cícero Cotrim e Thaís Barcellos

São Paulo, 30/01/2020 - Um em cada cinco municípios brasileiros deixaria de existir se as regras da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) do Pacto Federativo passassem a valer hoje. Ao todo, 1.012 das 5.570 cidades do País se enquadram nos critérios do texto, que propõe o fim de municípios com menos de 5 mil habitantes e cuja arrecadação com impostos próprios - IPTU, ITBI e ISS - seja inferior a 10% da receita total.

A principal linha de corte do projeto, na verdade, não é a proporção de receitas, mas a população total da cidade. Se a proposta previsse o fim de todos os municípios com arrecadação própria inferior a 10% da receita total, 3.971 cidades brasileiras seriam extintas, o equivalente a 71,3% do total e a 84,9% das que foram analisadas. Entre elas estariam duas capitais - Macapá, no Amapá, e Boa Vista, em Roraima -, bem como municípios ricos como Campo dos Goytacazes (RJ) e São Francisco do Conde (BA), sede da primeira refinaria de petróleo do País.

Para chegar a esses números, o Broadcast levantou os dados de receitas municipais de 2018 por meio do Sistema de Informações Contábeis e Fiscais do Setor Público Brasileiro (Siconfi). Os registros foram cruzados com as estimativas populacionais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Na conta, foram consideradas apenas as cidades que reportaram alguma receita com o IPTU, ITBI e ISS em 2018, para evitar que o eventual mau preenchimento da base por uma administração municipal inflasse a análise. Ao fim, foram analisados dados de 4.676 municípios. As 1.012 cidades encontradas correspondem a 80,7% das 1.253 com menos de 5 mil habitantes.





A PEC do Pacto Federativo foi entregue pelo governo federal ao Congresso no final de 2019, como parte do Plano Mais Brasil, que compreende três propostas de mudança na Constituição com o propósito de evitar novas crises nas contas públicas nacionais. Atualmente, a matéria está na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, sob a relatoria do senador Marcio Bittar (MDB-AC), que promete entregar seu parecer em fevereiro. Em entrevistas, Bittar tem se mostrado favorável à discussão da proposta que envolve os municípios, principalmente em relação aos gastos legislativos.

O objetivo da extinção das cidades seria eliminar custos com a administração da Prefeitura e da Câmara de Vereadores em municípios que "não arrecadam receitas próprias suficientes para custear sua própria estrutura."

Em termos práticos, no entanto, especialistas em política fiscal e gestão pública avaliam que a economia com salários de prefeitos, secretários e vereadores deve ser mínima diante dos maiores gastos municipais, que serão mantidos mesmo que na mão de outro governo: servidores ativos e inativos e serviços públicos. Por isso, a redução de despesas não compensaria os custos políticos, jurídicos, gerenciais e burocráticos que a extinção de municípios traria.

Mesmo que o fim dessas 1.012 cidades significasse a eliminação completa de toda a despesa administrativa geral e legislativa, o montante equivaleria a 20,9% do total de gastos desses municípios, segundo os números do Siconfi: R$ 3,329 bilhões de R$ 15,895 bilhões. Apenas com saúde e educação - ou seja, excluindo outros serviços públicos, como saneamento, transporte e cultura -, essas cidades gastaram em 2018 R$ 7,80 bilhões, ou 49,1% da despesa liquidada.



Além disso, mesmo que a proposta passe no Legislativo em um ano de eleições municipais - o que os analistas consideram difícil -, há chance de questionamento no Supremo Tribunal Federal (STF), já que a Federação é cláusula pétrea na Constituição, lembra o cientista político Fernando Abrucio, chefe do Departamento de Gestão Pública da FGV-SP.

"A descentralização brasileira pode ter ultrapassado o ponto ótimo. Depois da Constituição de 88, houve a criação de muitos municípios, o que gerou problemas de escala e de eficiência alocativa dos recursos. Mas a pergunta é qual é o ponto ideal [da descentralização]. Criar uma regra geral, simplista, não me parece tão inteligente, porque provavelmente irá ignorar outras razões culturais, históricos e geográficos, por exemplo, que motivaram a emancipação", afirma o especialista em contas públicas da Tendências Consultoria Integrada, Fabio Klein.

Tanto ele quanto Abrucio apontam que já há alternativas menos custosas para tornar a gestão mais eficiente e reduzir custos dos governos locais, como os consórcios intermunicipais, que podem ser incentivados com políticas federais e estaduais. Neles, as cidades compartilham serviços de educação e saúde, por exemplo.

Abrucio afirma que esses arranjos são uma melhor alternativa do ponto de vista gerencial, da cidadania, porque mantêm os direitos políticos dos municípios, e do ponto de vista social, porque mantêm esse tipo de gasto e o torna mais efetivo.

Ele cita exemplos de sucesso com saneamento na Alemanha, com políticas ambientais nos Estados Unidos, e também no próprio Brasil, no interior de São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, da Bahia e na Grande Florianópolis.

"A proposta do governo é uma visão deturpada do federalismo brasileiro. O maior problema não é o número de municípios. Esse é um erro político, fiscal e gerencial. Esse é um erro de diagnóstico técnico. O maior problema do federalismo brasileiro é a fragilidade das relações intergovernamentais", afirma Abrucio. Ele também nota que os municípios que absorveriam os extintos provavelmente iriam querer compensações para aceitar esse "passivo".

O chefe do Departamento de Gestão Pública da FGV-SP também destaca que o "boom de municípios" em busca do Fundo de Participação de Municípios (FPM) ocorreu até 1996, quando foi aprovada uma emenda constitucional que estabeleceu novas regras para criação de cidades. Desde então, o crescimento tem sido lento. O censo de 1980 reportou 3.991 municípios, número que saltou a 5.507 em 2000. Hoje, há 5.570, de acordo com a estimativa do IBGE - apenas cinco territórios autônomos a mais do que em 2010.



"Há um equívoco nos critérios usados por essa PEC. Eles são frágeis porque a arrecadação municipal também não diz respeito apenas ao IPTU, ITBI e ISS - esses são os impostos arrecadados pelo município, mas também é constitucional o repasse da cota-parte do ICMS pelos Estados, por exemplo. Só contabilizar esses tributos desfavorece as cidades rurais", argumenta o presidente da Confederação Nacional dos Municípios (CNM), Glademir Aroldi.

A entidade municipalista também critica o corte horizontal na faixa de cinco mil habitantes e avalia que o Ministério da Economia, autor do projeto, fez a proposta sem um estudo de impacto relevante. "Eu pessoalmente fiquei surpreso, porque entregamos um estudo sobre isso ao Ministério e eles não tinham os dados, tiveram de encaminhar para o IPEA para confirmar nossas informações", diz.


 Dez municípios com melhores e piores proporções de arrecadação própria 
 Ranking   Prefeitura   Total de Receitas (R$/milhões)   Arrecadação Própria (R$/Milhões)   Proporção 
1 Prefeitura Municipal de Xangri-lá - RS 130,19 65,89 50,6%
2 Prefeitura Municipal de São Paulo - SP 57.383,49 27157,57 47,3%
3 Prefeitura Municipal de Barra dos Coqueiros - SE 136,43 64,02 46,9%
4 Prefeitura Municipal de Barueri - SP 3.060,02 1418,78 46,4%
5 Prefeitura Municipal de Poá - SP 466,17 205,28 44,0%
4.672 Prefeitura Municipal de Olho d'Água Grande - AL 23,00 0,05 0,2%
4.673 Prefeitura Municipal de Afrânio - PE 51,05 0,08 0,1%
4.674 Prefeitura Municipal de Serrita - PE 41,34 0,04 0,1%
4.675 Prefeitura Municipal de Palestina - AL 21,15 0,03 0,1%
4.676 Prefeitura Municipal de Francisco Dantas - RN 14,00 0,01 0,0%
Fonte: Tesouro Nacional (Dados de 2018)
Elaboração: Broadcast


Contatos: cicero.cotrim@estadao.com e thais.barcellos@estadao.com
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