Economia & Mercados
08/12/2023 09:11

Entrevista/UE/Parlamento/Fernandes: há quem busque desculpas para evitar acordo com Mercosul


Por André Marinho

São Paulo, 07/12/2023 - Em meio a mais um revés nas negociações entre União Europeia (UE) e Mercosul por um tratado de livre-comércio, o eurodeputado português José Manuel Fernandes não tem dúvidas de quem é o culpado pelo impasse que arrasta o processo há mais de duas décadas: "É o protecionismo", sentencia, em entrevista exclusiva ao Broadcast.

Apesar de um renovado esforço diplomático para tentar destravar as discussões, o presidente da França, Emmanuel Macron, renovou a oposição ao acordo, nesta semana, sob o argumento de que o texto contradiz ambições ambientais. Em viagem à Europa, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva buscou escalar o apoio da Alemanha para fazer frente à resistência francesa. No entanto, os prospectos por um entendimento ainda este ano se esvaziaram - até porque, do lado sul-americano, também há incertezas, com a chegada do libertário Javier Milei à presidência da Argentina.

Na opinião de Fernandes, que preside a delegação do Parlamento Europeu para as relações com o Brasil, o cenário reflete as dificuldades de se estabelecer políticas que contrariam interesses do agronegócio. "Há gente que aproveita a desculpa da questão ambiental para esconder as verdadeiras razões para não quererem assinar o acordo", acusou. Confira a seguir os principais trechos da entrevista.

Broadcast: independentemente de aprovação ou não, qual é a posição do senhor sobre o acordo da União Europeia com o Mercosul? Ele é importante para os dois lados?

José Manuel Fernandes: O Acordo União Europeia-Mercosul é muito mais que um acordo comercial. É um acordo no qual estão presentes valores como reforço das democracias, do Estado de Direito, da Liberdade. São os valores comuns que compartilhamos. Essa força geopolítica resultante do acordo seria útil, por exemplo, para ajudar a paz em escala global e até para ajudar a África. A América Latina tem ligações fortíssima com a África. Então, esse acordo ajudaria nessa questão geopolítica. Isso porque estamos falando de 25% do PIB global, 750 milhões de pessoas - quase 10% da população mundial. O acordo tem que ser positivo para ambas as partes. Não podemos ter medo, porque um acordo baseado nos nossos valores, no qual ambas as partes têm o que ganhar, em que as transições climática e digital seriam favorecidas, ajudaria os dois lados. Não pode existir uma ideia de paternalismo e supremacia - estamos falando como iguais, em que ambas as partes têm muito a aprender uma com a outra. Temos aqui uma possibilidade de, em conjunto, contribuíamos para a valorização dos direitos sociais, para o combate às mudanças climáticas, para a transição digital, para um reforço na área de investigação, para termos uma cooperação muito maior na área de florestas.

Broadcast: Na ausência de um acordo, o senhor enxerga o risco de esse vácuo ser preenchido por atores antagônicos à UE, como por exemplo a China?

Fernandes: Essa é uma possibilidade. Neste momento, ao olhar para o planeta, é possível observar que as ditaduras se unem. A Rússia invadiu a Ucrânia e financia o terrorismo. A teocracia do Irã financia o Hamas. A China busca tirar proveito da situação da guerra, e não evitá-la. E a própria China é uma ditadura. Então, as teocracias estão se unindo contra as democracias. Seria muito importante que as democracias se unissem para se protegerem. Por isso, eu falo do reforço dos valores [presente no acordo]. Devemos privilegiar nossos relacionamentos econômicos e comerciais com aqueles que compartilham nossos valores.

Broadcast: O governo francês tem liderado a oposição à finalização do acordo, mas essa não é uma posição nova. Durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, Paris costumava citar a questão ambiental para se opor ao tratado. O que realmente está por trás dessa resistência francesa?

Fernandes: É o protecionismo, o medo e a falta de coragem. Neste caso concreto, são os agricultores franceses que, ao contrário do que se diz, não teriam o impacto que procuram passar em suas mensagens negativas sobre o acordo. Há muita gente que sempre usou desculpas para não aprovar o acordo com o Mercosul. Primeiro, era por causa do Bolsonaro. Depois, por causa das declarações do Bolsonaro. Agora, é por questões ambientais. Há gente que aproveita a desculpa do desmatamento, da sustentabilidade ambiental para esconder as verdadeiras razões para não quererem assinar o acordo, que é uma razão puramente protecionista. Não é com protecionismo que vamos seguir. Macron não consegue ver as vantagens que um acordo desse tipo traz, mesmo quando ele próprio fala sempre na autonomia estratégica da UE, na soberania, e que deveríamos reforçar laços com quem tem nossos valores. Há muita gente buscando razões para reabrir o acordo e adiá-los. Chega de adiamentos.

Broadcast: O presidente eleito da Argentina, Javier Milei, já fez diversas críticas ao Mercosul. A chegada dele ao poder dificulta o processo?

Fernandes: Vamos ver se ele é contrário [ao acordo]. Eu tenho a expectativa que o governo da Argentina venha a ser favorável ao acordo, ainda que seja legítimo o novo governo querer analisar o acordo. Mas se quem negociou antes do acordo por parte da Argentina continua a ser o mesmo negociador dentro dos ministérios, isso já facilita a aprovação do acordo.

Broadcast: Se o acordo não for aprovado, quais são as alternativas que UE e Brasil têm para ampliar a cooperação?

Fernandes: O Brasil é um dos dez parceiros estratégicos da União Europeia desde 2007. Só isto mostra que podemos solidificar a cooperação e essa parceira estratégica. Isso não significa que essa parceria estratégica não possa ser reforçada com o acordo com o Mercosul. Se não houver um acordo, temos que reforçar essa parceria estratégica. Continuo a insistir nessa oportunidades que temos de finalizar esse acordo até o fim deste ano. Até porque no primeiro semestre de 2024 a presidência da UE passará para a Bélgica e, depois, para a Hungria. Teremos eleição em que o Parlamento Europeu poderá ter uma maioria menos favorável ao acordo com o Mercosul. Portanto, não podemos perder essa oportunidade em benefício de ambos os blocos.

Broadcast: A Lei de Desmatamento da UE determina a proibição de importações de produtos provenientes de áreas desmatadas. Recentemente, o ministro da Agricultura brasileiro, Carlos Fávaro, disse que a legislação fere a soberania do Brasil. Como o senhor responde a isso?

Fernandes: A indicação que temos é a de que o Brasil quer avançar em direção ao desmatamento ilegal zero. A descarbonização está em linha com os objetivos que entendemos que vão combater as mudanças climáticas.

Broadcast: Neste primeiro ano do governo Lula, o que mudou em relação à gestão de Bolsonaro no que diz respeito à percepção da UE sobre a questão ambiental?

Fernandes: Vemos um Brasil mais aberto e mais global. No próprio Ministério do Meio Ambiente, está Marina Silva, que tem as nossas mesmas preocupações na área ambiental. Agora, em escala global, há aqueles que são os radicais verdes, que em vez do gradualismo, preferem uma revolução que traria danos às pessoas e não ajudariam que os objetivos climáticos fossem sentidos. O gradualismo é sempre a melhor forma. Temos que ser ambiciosos, mas realistas, e planejar um caminho gradual. E é isso o que estou vendo na postura da ministra do Meio Ambiente.

Broadcast: Mas há divergências na questão geopolítica. No começo do ano, Lula chegou a dizer que Ucrânia e Rússia têm culpa pela guerra, o que vai na contramão da posição europeia...

Fernandes: Eu penso que o presidente Lula, em Portugal, corrigiu suas declarações. Na declaração conjunta [de Portugal e Brasil], estava claro que se condenava a ocupação ilegal e a agressão da Rússia à Ucrânia. Se em algum momento as declarações, por exemplo, sobre a China foram ambíguas, elas foram esclarecidas pelo presidente Lula.

Broadcast: Mudando o foco para questões domésticas da UE, o bloco tem tido dificuldades para aprovar as regras fiscais para o ano que vem. Quais são os principais obstáculos?

Fernandes: Uma coisa são as regras de governança das dívidas públicas - essas vão se manter com o teto de 3% do PIB para o déficit e uma dívida pública abaixo de 70% do PIB. Outra coisa é o orçamento e o quadro plurianual da UE. O orçamento de 2024 já está aprovado, mas nós estamos sem margens dentro dele. E há alguns compromissos assumidos que têm que ser respeitados. Com a guerra na Ucrânia, aumentamos apoio humanitário. Para além disso, tivemos aumento nos juros que se refletem no orçamento, uma vez que o pagamento resultante do Next General EU (plano de recuperação e resiliência) tem juros pagos de 2021 a 2027. Tínhamos previsto US$ 15 bilhões para pagamento dos juros. Com o aumento das taxas básicas, esse valor está em US$ 30 bilhões. Queremos reforçar o quadro financeiro plurianial.

Broadcast: Quais são as divergências?

Fernandes: Há uma grande diferença. Nós queremos reforçar o orçamento. O Conselho [Europeu], que representa os Estados-membros, quer manter as contribuições que fazem e, em vez de reforçar o orçamento, querem cortar programas existentes para conseguir ajudar a Ucrânia e pagar os juros resultantes do Next Generation EU. Nós não vamos aceitar cortes em programas com o Erasmus+ [programa na área da educação].

Broadcast: O Tribunal de Justiça da Alemanha considerou ilegal o uso de recursos destinados à pandemia para projetos climáticos. Isso forçou o governo a ter que suspender um dispositivo que limita a dívida local. Com o orçamento alemão sob pressão, como esse imbróglio dificulta as discussões sobre as contas públicas da UE?

Fernandes: A Alemanha sempre foi uma solução e ajudou a empurrar os outros membros a um compromisso. Há uma situação diferente no orçamento de 2024, na qual a Alemanha foi uma das mais relutantes. Isso prova que, antes, a Alemanha tinha uma liderança com a Merkel. Hoje, não tem mais. Com os problemas que temos na UE, temos governantes em vez de líderes. O Scholz não consegue liderar o seu próprio país, quanto mais ajudar que a UE tenha força e encontrar soluções. Essa questão tem repercussões, o Tribunal Constitucional considerou ilegal que o fundo para o combate à covid-19 fosse usado para esses objetivos. Mas essa é uma solução que precisa ser encontrada pela própria Alemanha.

Contato: andre.marinho@estadao.com
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