Economia & Mercados
05/08/2022 19:34

Entrevista/Mastercard/Michelle Meyer: quando os EUA espirram, resfriado pode pegar emergentes


Por Aline Bronzati, correspondente

Nova York, 04/08/2022 - Os Estados Unidos ainda não estão em recessão, mas o momento é de cautela e há motivos de sobra para a maior economia do mundo estar em alerta, de acordo com a economista chefe do Mastercard Economics Institute, Michelle Meyer. O ritmo rápido de aperto monetário do Federal Reserve (Fed, o banco central norte-americano) e o imposto inflacionário são, conforme ela, os principais. A situação de alerta também vale para os países emergentes, que podem ser impactados como já se nota na saída de capital registrada nos últimos meses.

"Esses países estão amarrados aos EUA e quando os Estados Unidos espirram muitos outros países tendem a pegar o resfriado também", afirma Meyer, em entrevista exclusiva ao Broadcast.

Depois de uma carreira dedicada a Wall Street, ela colocou o pé para fora pela primeira vez e assumiu em fevereiro como economista-chefe do Mastercard Economics Institute para a América do Norte, após 11 anos de Bank of America, com passagens ainda por Barclays e Lehman Brothers. Meyer continua perto do universo financeiro, mas, agora, analisando os impactos macroeconômicos pela lente do consumidor no instituto, lançado em 2020. Abaixo, os principais trechos da entrevista:


Foto: Mastercard/Divulgação

Broadcast: Temos um debate hoje sobre se os Estados Unidos estão em recessão ou não. Qual a sua visão?

Michelle Meyer:
O debate sobre se a economia dos EUA está entrando em recessão vem do fato de que tivemos dois trimestres negativos do PIB. Assim, a economia, quando medida como o PIB real, contraiu no primeiro e segundo trimestres, o que é uma interpretação casual de recessão. Mas não é a definição formal de recessão, que vem do National Bureau of Economic Research (NBER), e analisa uma série de variáveis e não apenas o PIB. Assim, o NBER definirá uma recessão olhando para o nível de empregos, para a produção industrial, renda real e tendências de gastos reais. E quando você olha para essas variáveis, o indicador sugere que ainda não chegamos lá. Ainda estamos vendo a criação de empregos, uma atividade manufatureira, e até mesmo em termos de inflação, os gastos reais ainda estão aumentando.

Broadcast: E quanto aos próximos meses? Você vê o risco de os EUA entrarem em uma recessão formal?

Meyer:
Quando olhamos para frente, há muitas razões para estarmos em alerta. Nós temos visto a deterioração do sentimento do consumidor, que está muito mais preocupado sobre o choque inflacionário, com os níveis mais altos dos juros. Portanto, há claros ventos contrários na economia e que implicam em um crescimento moderado. Nós também estamos vendo partes da economia, como o mercado imobiliário dos EUA, que já estão se contraindo, o que faz sentido porque esse é o setor mais sensível aos juros e o Fed está aumentando as taxas rapidamente para esfriar a economia em um esforço para trazer estabilidade de preços ou inflação moderada. Portanto, o fato de termos um Federal Reserve em rápido aperto, juntamente com esse imposto inflacionário sobre a economia, é motivo de cautela. Ao mesmo tempo, porém, o mercado de trabalho é forte, não vimos uma tendência real de aumento de demissões. Na verdade, as empresas ainda estão tentando atrair trabalhadores. Temos balanços sólidos nos Estados Unidos, as poupanças das famílias estão fortes, os níveis de endividamento ainda estão são baixos. As pessoas têm acesso ao crédito e o setor bancário está saudável. Portanto, há muitos fatores que fornecem importantes amortecedores na economia. Mas, devemos estar atentos a grandes riscos que a economia está enfrentando.

Broadcast: Mas os EUA conseguirão evitar uma recessão?

Meyer:
Há claramente uma chance maior de uma recessão agora, mas acho que uma aterrissagem suave ainda é uma possibilidade, já que a economia tem esse amortecedor, esse ponto de partida saudável. E também acho que o Federal Reserve não está tentando empurrar a economia para a recessão, ele gostaria de evitá-la. Seu objetivo é um pouso suave. Poderíamos ter algum impulso desinflacionário do lado da oferta, o que faria com que o Fed não precisasse fazer tanto ou ser tão agressivo no esfriamento da economia para reduzir a inflação. Portanto, é um a ação de equilíbrio para o Fed e seu objetivo número um é a estabilidade de preços, no qual está determinado e firme em reduzir a inflação, e sua alavanca é enfraquecer a demanda para fazer isso. Mas também há essa força externa do lado da oferta, o que poderia fornecer alguma ajuda. Então, estamos monitorando isso de perto.

Broadcast: E quais são as suas expectativas para o relatório do mercado de trabalho, o payroll, amanhã?

Meyer:
Me parece que vamos continuar vendo uma força de trabalho expansionista. O consenso prevê a criação de cerca de 250.000 empregos em julho. Isso parece bastante razoável. Portanto, seria uma desaceleração em relação ao ritmo nos meses anteriores, que foi mais próximo de 350.000, mas ainda seria um crescimento muito forte de empregos. Temos anúncios surgindo aqui e ali de empresas que estão mudando seus planos de força de trabalho, mas, quando olhamos os pedidos de auxílio-desemprego, a tendência é de alta, mas é muito modesta e ainda não é consistente, com redução total de empregos. E também tem vários setores no lado dos serviços da economia que ainda estão tentando ativamente contratar, então, pense na indústria de turismo e quão forte é a demanda do consumidor. Nas partes da economia que estão tendo um impacto maior das altas de juros ou com o choque inflacionário, sim, você pode ter alguma redução na força de trabalho. Mas, onde ainda há demanda e crescimento muito fortes e falta de mão de obra, parece que há o desejo de continuar a contratar. Então, acho que haverá alguma diferenciação de setores que aparecerá nos dados dos próximos meses. Isso será consistente com o que estamos vendo na economia, de como esses diferentes ventos contrários estão impactando o seu desempenho.

Broadcast: Como você bem observou, há um cenário misto na economia norte-americana. Como o consumidor dos EUA está lidando com este ambiente inflacionário?

Meyer:
O consumidor está fazendo escolhas e está sendo muito racional sobre os gastos. Quando olhamos para o desdobramento dos gastos do consumidor, onde houve um choque inflacionário maior, observamos uma redução no equilíbrio entre gastos reais e quantidade. Assim, os consumidores estão dizendo que talvez reduzam o quanto gastam nessa categoria ou vão optar por produtos menores ou mais baratos, ou apenas mudarão seu comportamento de alguma forma para responder a esses aumentos de preços relativos.

Broadcast: Em quais setores isso fica visível?

Meyer:
O exemplo perfeito disso foi como os consumidores responderam ao grande aumento nos preços dos combustíveis durante a primavera e o início do verão. Em resposta a esse aumento dramático nos preços, os consumidores realmente reduziram o quanto estavam usando gasolina. Vimos uma queda nos gastos reais em postos de gasolina e acho que isso foi um fator que contribuiu para reduzir os preços novamente em julho, porque a demanda realmente diminuiu. Há um movimento semelhante em supermercados, exatamente em termos de como os consumidores estão gastando. Então, eu acho que eles estão tentando o melhor caminho para navegar neste ambiente de preços. Obviamente, não estão satisfeitos com isso. Mas há uma mudança na forma como os consumidores estão gastando e eles estão tentando lidar com esse choque inflacionário.

Broadcast: Depois da reunião de julho, o mercado apostou em uma possível desaceleração no ritmo de alta de juros nos EUA, mas essa semana mudou de ideia após falas de dirigentes do Fed. Quais são as suas expectativas para as próximas decisões?

Meyer:
Parte da maneira como o Fed executa a chamada política é por meio de sua comunicação. Então, é realmente incrível ver como seus discursos e orientações mudam significativamente essa transmissão de política e as últimas duas semanas são o exemplo perfeito disso. O presidente (Jerome) Powell sugeriu que eles poderiam estar próximos de taxas neutras, o que significa que é o nível de juros necessário para ter estabilidade de preços. E outros membros do Fed disseram: não, ainda não chegamos lá. A inflação está muito alta. Este não é o nível das taxas de juros. Continuaremos até conseguirmos estabilizar os preços. E acho que está certo. Então, minha sensação é que o Fed continuará a aumentar as taxas de juros.

Broadcast: Em que ritmo?

Meyer:
Eu acho que é justo supor que haverá alguma moderação no ritmo dos aumentos das taxas. Eu não sei se eles vão continuar elevando os juros em 75 pontos-base, mas, eles sentem que fizeram o suficiente para esfriar a economia para se sentirem seguros na visão de que os riscos de inflação diminuíram. Eles terão de continuar avançando com aumentos de taxas. Agora, novamente, eles estão recebendo alguma ajuda do lado da oferta. Se você olhar para os preços da gasolina estão caindo. Isso é bastante útil. É útil em termos de expectativas e sentimentos de inflação, e é útil em termos de um fator externo que eles não podem controlar. Então, isso apenas fornece algum suporte. Eu acho que esses estoques estão começando a ficar inchados em certas partes da economia, que também é desinflacionária. Os membros do Fed estão prestando bastante atenção nisso e sentem que a dinâmica mudou, que sua política e o que está acontecendo no lado da oferta, estão levando-os em direção à estabilidade de preços, mas não acho que estejam prontos para declarar sucesso. Assim, continuarão até que vejam mais evidências de que a inflação está desacelerando amplamente.

Broadcast: Mas você acredita em outro aumento de 75 pontos-base na reunião de setembro?

Meyer:
O mercado está precificando um aumento de 50 pontos-base para setembro, o que parece ser uma expectativa razoável. O mercado balançou. E acho que a maneira como estão interpretando o Fed agora é justa, o que é algo próximo a 50 pontos-base na próxima reunião, e depois talvez mais 50 ou 25 pontos-base. Mas, na virada do ano, provavelmente no início do próximo ano, se tudo correr como planejado, eu acho que você pode começar a ver picos de taxas, porque terá bastante desaceleração na economia.

Broadcast: Qual a sua visão sobre os efeitos do cenário atual, coberto de incertezas, para a economia global?

Meyer:
As dinâmicas que estamos vendo nos EUA são muito similares em várias formas àquelas que identificamos na economia global. Inflação não é uma história somente dos EUA. É global. E é particularmente aguda na Europa. A tensão na Europa entre combater a inflação e apoiar a economia é ainda mais clara, porque grande parte dessa inflação é externa por causa de seus laços no setor de energia com a Rússia e a situação na Ucrânia. Há muita preocupação com o potencial de enfraquecimento e crescimento na Europa, dos quais já é possível começar a ver evidências. O Banco Central Europeu também está subindo os juros. As taxas não alcançaram as dos EUA, de forma alguma, e, provavelmente, não vão, mas a Europa saiu de juros negativos e está começando a aumentá-los para tentar tirar um pouco da inflação da economia. A China tem a sua própria história, com algumas das dinâmicas diferentes, em parte por causa da aparência da economia chinesa durante a pandemia. As políticas eram muito, muito diferentes. Então, é difícil fazer uma comparação porque há um estágio diferente do ciclo pós-pandemia na China do que nos EUA ou na Europa. Mas há muitos paralelos entre o que os EUA e a Europa estão passando em termos de choque inflacionário e o desafio que os bancos centrais têm de calibrar a economia.

Broadcast: E como você vê o impacto desse ambiente, com a subida de juros nos países desenvolvidos, principalmente, nos EUA, para os emergentes, incluindo o Brasil? Você vê risco de recessão?

Meyer:
O dólar americano é a moeda de reserva. A política monetária do Fed gera uma repercussão significativa para outros países, principalmente, os mercados emergentes. Portanto, há uma clara sensibilidade aí. Quero dizer, você pode ver o que aconteceu no dólar americano ultimamente, houve um notável fortalecimento da moeda. Então, isso impacta os fluxos de capital e impacta os mercados emergentes que têm financiamento em dólares. Então, a velocidade com que o Fed aumenta os juros, o impacto na taxa de câmbio e, finalmente, a saúde da economia dos EUA vão importar muito para os mercados emergentes. Esses países estão amarrados aos EUA. Quando os Estados Unidos espirram, muitos outros países tendem a pegar o resfriado também.

Contato: aline.bronzati@estadao.com
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