Economia & Mercados
17/01/2022 11:29

Especial: Extinção dos modelos populares abre abismo entre brasileiro e carro novo


Por Eduardo Laguna

São Paulo, 14/01/2022 - Num mercado onde os modelos populares estão à beira da extinção e o custo de financiamento sobe em velocidade que não se via há 13 anos, sair de carro novo de uma concessionária vem se tornando um sonho inviável a cada vez mais brasileiros.

Se, quatro anos atrás, 28 salários mínimos eram suficientes para comprar um automóvel, hoje não se adquire um zero quilômetro com menos de 40 salários mínimos. Isso porque o salário mínimo, com alta de 27%, não conseguiu acompanhar o salto três vezes maior no período (83%) do preço do carro mais barato do mercado - hoje, o subcompacto Kwid, da Renault, que custa R$ 48,8 mil.

Levantados com exclusividade para o Broadcast pela consultoria Jato Dynamics, os dados oferecem um retrato do abismo aberto entre renda e preço dos veículos. Revelam também em números como a transição dos carros compactos a modelos maiores, tanto em tamanho como em conteúdo tecnológico, mudou o curso de um produto que vinha, por muito tempo, tornando-se mais acessível.


Carro zero versus renda
Ano Marca Modelo Preço (R$)* Salário Mínimo Salários necessários para aquisição
2000 Fiat Uno 12.569,00 136,00 92
2005 Fiat Uno 18.120,00 260,00 70
2010 Fiat Uno 22.940,00 510,00 45
2015 Chery QQ 23.990,00 788,00 30
2018 Chery QQ 26.690,00 954,00 28
2019 Chery QQ 29.690,00 998,00 30
2020 Fiat Mobi 33.490,00 1.039,00 32
2021 Fiat Mobi 38.990,00 1.100,00 35
2022 Renault Kwid 48.790,00 1.212,00 40
Fonte: Jato Dynamics. *Preço sugerido da versão mais barata no primeiro dia útil de cada ano

A pandemia ajudou a acentuar bastante a elitização no consumo de automóveis porque as restrições de oferta abriram margem ao repasse de aumentos de todo tipo na estrutura de custo das montadoras: do frete aos materiais usados na produção, passando pela energia, e com tudo maximizado pelo câmbio mais caro. Há mais gente querendo comprar do que carros sendo produzidos, um desequilíbrio que se reflete não apenas nos preços, mas também em direcionamento da produção a modelos mais caros.

A guinada das montadoras tem, no entanto, origem anterior à crise sanitária. Nem a indústria, decidida a voltar a ser rentável ao invés de brigar por participações de mercado a qualquer preço, nem o consumidor de menor renda estão dispostos a pagar a conta das tecnologias de controle de emissões e segurança que vêm se tornando obrigatórias nos carros fabricados no País. Assim, as montadoras decidiram se voltar nos últimos cinco anos a um público de maior poder aquisitivo, investindo em arquiteturas maiores - especialmente utilitários esportivos (SUVs) e picapes - e equipadas com itens de conforto, conectividade e entretenimento que o consumidor de alta renda tem condição de pagar, junto com os demais dispositivos obrigatórios por lei.

O resultado é que modelos populares estão sendo aposentados - entre eles, o Uno e, futuramente, o Gol -, enquanto os carros que seguem no mercado estão sendo vendidos, na média, por mais de R$ 120 mil. Antes da pandemia, essa conta ficava abaixo dos R$ 100 mil, conforme dados da Bright Consulting.

O mercado de carros teve dois momentos distintos nas últimas duas décadas. Durante a maior parte desse período, entre 2000 e 2018, o produto se tornou mais acessível, e com anos marcados por incentivos do governo, como o IPI reduzido, o consumo anual de automóveis de passeio chegou a passar das 3 milhões de unidades - o dobro do ano passado.

Porém, após esse ciclo, o movimento se inverteu, com o carro voltando a se distanciar do alcance dos brasileiros nos anos seguintes, marcados pela ascensão dos SUVs sobre os segmentos de entrada e avanços do padrão tecnológico em meio à globalização das plataformas.

Com a escalada dos custos e o aperto na oferta, o preço do carro subiu 20% nos últimos dois anos, coincidindo com o momento em que a renda do brasileiro, corroída pela inflação e salários menores de quem perdeu o emprego e está voltando ao mercado de trabalho, recuou ao ponto mais baixo das estatísticas do IBGE.

Numa comparação que ilustra bem a diferença de viabilidade do produto, o brasileiro, se considerado o salário mínimo de cada país, precisa trabalhar três vezes mais do que o americano para conseguir comprar um automóvel. Nos Estados Unidos, o modelo mais barato é o Chevrolet Spark, que em sua versão mais básica custa US$ 13,6 mil, ou 12 salários mínimos de um trabalhador de lá com jornada de 40 horas semanais.

Diretor de desenvolvimento de negócios da Jato, Milad Kalume Neto diz que, mesmo se o dólar eventualmente se estabilizar abaixo de R$ 5,00 no futuro, a possibilidade de o preço de entrada do automóvel voltar a valor mais próximo de R$ 40 mil esbarra na prioridade da indústria de voltar a ter um negócio financeiramente sustentável.

"Para lançar veículos mais acessíveis, além de um alívio no câmbio, a indústria precisará de tempo para amortizar investimentos realizados nos últimos anos e realizar mais lucros. Não podemos nos esquecer que o setor vem se recuperando de três crises nos últimos anos sete anos", afirma Kalume Neto, referindo-se à recessão doméstica de 2015/2016, a pandemia e, agora, a crise de oferta causada, principalmente, pela escassez global de componentes eletrônicos.

Contato: eduardo.laguna@estadao.com
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