Economia & Mercados
29/07/2022 18:41

Entrevista/Bradesco Asset/Bruno Funchal: há muita incerteza sobre regra fiscal a partir de 2023


Por Renata Pedini e Francisco Carlos de Assis

São Paulo, 28/07/2022 - Há muita incerteza no mercado financeiro sobre qual será a regra fiscal a partir de 2023, na visão do ex-secretário especial do Tesouro e Orçamento e atual CEO da Bradesco Asset, Bruno Funchal. "Não à toa, a curva de juros está tão alta", afirma, ao comentar a piora de percepção recente, em meio ao aumento do Auxílio Brasil para R$ 600 até o fim deste ano.

Funchal deixou o cargo em outubro do ano passado, diante de ameaças ao teto de gastos para avançar no benefício, para R$ 400, à época. "Mudou a regra, deu Auxílio de R$ 400. Agora, ao que tudo indica, todo mundo já está precificando, é que deve ter um Auxílio mais gordo", cita, estimando 0,5% do PIB em despesa para um programa de renda.

O colchão de liquidez do Tesouro está bem, a dívida tem caído, e o primário está melhorando, mas a percepção de risco tem a ver com a perspectiva do futuro, pondera. Leia abaixo os principais trechos da entrevista, concedida no escritório da Bradesco Asset, em São Paulo.


Foto: Divulgação

Broadcast: A percepção do mercado sobre o cenário fiscal piorou com a PEC que aumentou o Auxílio a R$ 600. Qual sua avaliação?

Funchal:
Uma coisa é olhar o que está sendo entregue até agora e outra coisa é a perspectiva futura. Na gestão da dívida, o caixa, o colchão de liquidez (do Tesouro) está super robusto. Muito diferente de 2020. Quando entramos na pandemia, com gasto extraordinário, chegamos a ter um déficit de R$ 700 bilhões. Num ano que era para ter uma emissão de R$ 800 bilhões, foi de R$ 1,5 trilhão. Ou seja, dobrou a necessidade de fazer emissão (de dívida). Mas o Tesouro fez um trabalho bom de acelerar as emissões e acumular um colchão, que está bem robusto. Isso traz um conforto para a gestão da dívida e para o fiscal. Agora, o colchão está bem, a dívida tem caído e o primário está melhorando. Só que não é o que está refletido na curva de juros e nos parâmetros de mercado.

Broadcast: Por quê?

Funchal:
Porque tem muita incerteza. E isso tem a ver com a perspectiva do futuro. O efeito da PEC que gerou os R$ 600 é muito mais em relação ao temor de isso abrir uma discussão de aumentar o Auxílio de forma permanente e aí a conta, que é de R$ 41 bilhões, na ótica do Ministério da Economia, um gasto extraordinário para este ano, tende a se tornar uma despesa permanente. Já vemos todos os candidatos falando isso. Esse é um ponto de incerteza e, quando você faz a conta, é mais 0,5% do PIB de despesa para um programa de renda. Um programa de R$ 34 bilhões em 2020, que era o orçamento normal do Bolsa Família, vai chegar a R$ 150 bilhões em 2023. Na época em que estávamos discutindo os R$ 400, já tinha esse debate: vai ferir a regra fiscal para avançar no Auxílio? Decidiu-se que, no momento, por uma decisão política, era importante avançar, mesmo que tivesse que mudar a regra. Mudou a regra. Agora, ao que tudo indica, todo mundo já está precificando, é que deve ter um Auxílio mais gordo, de R$ 600,00. Adicional a isso é qual é a regra fiscal daqui para frente? Como é que fica? Hoje, embora tenha despesa extra teto, o teto ainda funciona.

Broadcast: Se funciona, por que não ancora as expectativas?

Funchal:
Por mais que não traga a mesma credibilidade de antes, está funcionando. Antigamente, ele ancorava expectativa, hoje está difícil de ancorar porque não sabemos o que vai ser da trajetória de despesa futura e aí não sabemos qual vai ser a trajetória de dívida. Assim, na execução no ano, se teve uma receita extraordinária e tem teto, ela não vira despesa automaticamente, melhora o primário. É por isso que o primário tem melhorado.

Broadcast: E o governo tem falado de fechar o ano com superávit...

Funchal: Pois é. O último Relatório Bimestral de Receitas e Despesas mostrou que o déficit caiu de R$ 65 bilhões para R$ 59 bilhões. E, mesmo com os R$ 41 bilhões de despesas programados para este ano por causa dos R$ 600, tem um primário melhor. Isso é ainda o teto funcionando. A dúvida é, dependendo de quem ganhar (as eleições), qual vai ser o modelo. Não está claro. Aí não tem como ancorar expectativa e fica difícil calcular a trajetória de dívida. Essa dificuldade se traduz nos preços. É muito mais 2023 para frente do que o realizado em 2022. A própria Fitch mudou o viés, de negativo para neutro, não podemos ignorar. O Brasil, comparado a outros países, conseguiu reverter muito a parte fiscal, reduzir a dívida. O problema é a incerteza daqui para frente.

Broadcast: Cabe já discutir agora uma nova âncora fiscal?

Funchal:
Faz parte do processo agora, inclusive. Se formos pensar em agenda, estamos entrando num período eleitoral. Agenda de propostas econômicas, de produtividade, de crescimento. Para crescer, precisamos aumentar a produtividade e reduzir o custo da economia, que é o juro. Como se reduz o custo da economia? Trabalhando o fiscal. Qual é a proposta? Por enquanto, não tem. E esse é o grande ponto.

Broadcast: Os investidores com os quais o senhor conversa trazem essa preocupação firme?

Funchal:
Trazem. Não só Brasil, mas exterior também. No fundo, essa incerteza já está precificada na curva. Não à toa, os juros estão bem altos.

Broadcast: Há um temor de retrocesso, o senhor diria?

Funchal:
No fiscal, de gastar mais? Sim. É inevitável. O ponto a ser discutido é qual é o caminho para voltar a ancorar expectativas e trazer credibilidade. Quais são as prioridades e como cabem no Orçamento. O principal é discutir as alternativas. Por enquanto, está tendo pouca discussão, em geral.

Broadcast: Ainda neste governo, a antecipação de dividendos das estatais é um problema?

Funchal:
Faz parte da lógica desse pacote do extraordinário. Teve um gasto extraordinário da PEC (R$ 600) e o que eu imagino é que vamos pagar essa despesa extraordinária com fluxo de receita extraordinária, que é o dividendo. Pagando essa dívida neste ano, a dúvida é 2023. A preocupação é como é que ficam as despesas recorrentes. O papel do teto era controlar as despesas. Nós sabíamos, daqui a um ano, quanto seria a despesa. É simples, pega a despesa de hoje e ajusta pela inflação. Hoje, não sabemos porque não sabemos qual vai ser a referência.

Broadcast: Em meio às incertezas, o mercado passou a exigir mais prêmio para financiar a dívida e o Tesouro ajustou as emissões de títulos. Há motivo para preocupação?

Funchal:
O Tesouro se prepara para ter no mínimo de três a quatro meses de vencimento em caixa. No último dado disponível, que é o Relatório Mensal de Dívida, está com R$ 1,220 trilhão em caixa, 9,75 meses (suficiência de caixa) em junho, então está muito confortável. Esse colchão foi sendo acumulado ao longo de 2021 e 2022, já com a previsão de que ano eleitoral é de mais volatilidade. Como está com um colchão confortável, em períodos de mais instabilidade, quando os juros estão mais altos, ele tira o pé, não precisa emitir para rolar dívida. Assim, entra recompondo o caixa em condições de calmaria e não pressiona a curva de juros.

Broadcast: Em 2023, Selic alta, desaceleração da atividade e queda das commodities vão pesar na arrecadação?

Funchal:
Esse é mais um ponto para ter uma regra que controle despesa. Por que a dívida caiu tanto? Ainda tinha o teto, trava na despesa, e o excesso de arrecadação foi usado para a controlar a dívida. O que gerou esse aumento de arrecadação foi crescimento, inflação e commodities. Já está ocorrendo a reversão das commodities. O crescimento vai ser menor, de 2% neste ano para 0,8% em 2023, e a inflação, de 5,2%, após 7,6%. Deve ter efeito. Mas não deve nominalmente cair. Uma inflação de 5% e crescimento positivo, tendo a regra do teto, manteria gordura. Mas a gordura diminuiu e, sem despesa controlada, é um fator de risco.

Broadcast: A inflação converge à meta em 2024? Há algum risco?

Funchal:
Em 2024, converge para algo próximo da meta. (Os riscos são) fiscal e guerra, com choque de oferta e desafio dos combustíveis. Se não fizer o trabalho no fiscal, o Banco Central vai ter que fazer no monetário. Já experimentamos um fiscal mais apertado depois do teto e conseguimos ver os juros caindo. Não caiu a 2% por causa da pandemia. Já estava em 4,5% antes da pandemia porque tinha o fiscal controlado.

O BC está trabalhando sozinho?

Funchal:
Não. É muito difícil você falar que não tem uma tentativa de controlar o fiscal. É muito mais em termos de incerteza mesmo de arcabouço. O BC está fazendo um trabalho bom e está dando um sinal de que é importante ter uma política coerente para que a gente tenha um ambiente de juros baixo. Juros baixos são um baita estímulo para crescimento econômico. No fundo, estamos escolhendo: mais gasto público, mais juros altos, menos investimentos e menos emprego. Essa é a troca que se quer fazer? Acho que a discussão é essa.

Broadcast: A volatilidade aumenta com as campanhas eleitorais, mas, se houver pistas sobre os planos para o fiscal, pode ajudar? Espera algum sinal já neste ano?

Funchal:
Gostaria que fosse para este ano, mas acho que vai ficar para o ano que vem. O momento para discutir é ótimo, porque faz parte de um conjunto, de uma proposta de agenda para o País. Vai ter mais volatilidade e só vai acabar mesmo quando tiver a definição.

Broadcast: Como o senhor vê a redução de impostos promovida pelo governo?

Funchal:
Vejo como bem natural, partindo do Ministério da Economia do ministro (Paulo) Guedes. Se é para discutir uma intervenção do Estado para trazer condições, em vez de focar no aumento de gastos, é nos impostos, porque vai na linha de um apoio do Estado, de uma política fiscal mais expansionista, mas, por outro lado, tirando o peso do Estado do setor privado para que ele possa crescer. Acho natural, dado o perfil do ministro. Claro, o ideal é só começar a discutir desonerações depois de estar com superávit, voltar com a dívida para um nível razoável. O ideal seria reduzir nossa dívida para em torno de 60-65% do PIB e, depois, começar a reduzir, contar com gasto controlado, repensar o sistema tributário com uma carga menor. Mas sabemos como são as discussões de propostas de políticas fiscais.

Broadcast: Não seria melhor se viesse numa reforma tributária?

Funchal:
Com certeza. O governo está no direcionamento de reduzir carga. Isso é fato. Agora, quando você fala de reforma tributária, acho que é muito mais no sentido de reduzir complexidade do sistema. Se fizermos uma reforma que descomplica, é ganho de produtividade na veia. Se for falar de agenda de crescimento, é uma das medidas mais relevantes. Reforma tributária ampla, de IVA, não de Imposto de Renda.

Broadcast: Das propostas, qual a melhor ou qual teria chance de aprovação?

Funchal:
Pois é. Essa é a grande dificuldade. Na proposta que revisa todo o sistema do imposto sobre consumo, o grande ponto é como fazer todo mundo concordar. Então, é de política. Uma das dificuldades nessa discussão era que os Estados concordavam desde que não corressem nenhum risco de perder receita e a União compensasse tudo. Obviamente, tinha um embate com a União, que não topava. Vai mudar governo, vão ter novos governadores, vai ser discutido. Vai depender muito do que os novos governadores pensam. Você precisa de uma grande coalização. É o mais importante, mas é o mais difícil, o mais complexo.

Broadcast: O senhor vê risco de aumento de imposto no ano que vem ou de emissão de dívida maior?

Funchal:
É complicado falar, porque não sabemos quais são as propostas. Dependendo, é possível. Depende muito de como será a composição do Congresso. Hoje, o Congresso é muito refratário ao aumento de imposto.

Broadcast: Seria necessário para fechar a conta do governo?

Funchal:
Depende do tamanho da conta. Você sabe qual é? Eu também não sei. A curva de juros está aberta porque ninguém sabe. Sabemos dos R$ 600, que podem ser mais R$ 50 bilhões, e a dívida ainda ficaria mais ou menos estável. Então, não sei dizer.

Broadcast: Em relação aos dois candidatos à Presidência na liderança da corrida, o que o mercado já precificou?

Funchal:
Ainda tem muita incerteza, é muito difícil falar. Tem algo de fiscal precificado, então, os R$ 600 (de Auxílio Emergencial), independentemente de quem for, provavelmente vão ficar. Para além disso, é muito difícil porque não teve discussão de agenda. O bom é o seguinte: os dois candidatos já tiveram experiência no cargo, então, alguma informação passada já é usada para poder fazer estimativas. Mas é muito difícil porque passado não explica o futuro.

Contatos: renata.pedini@estadao.com e francisco.assis@estadao.com
Para ver esta notícia sem o delay assine o Broadcast+ e veja todos os conteúdos em tempo real.

Copyright © 2024 - Todos os direitos reservados para o Grupo Estado.

As notícias e cotações deste site possuem delay de 15 minutos.
Termos de uso