Política
05/04/2022 18:33

Entrevista/USP/Diogo Coutinho: regulador fraco pode tornar lei das fake news pouco efetiva


Por Iander Porcella

Brasília, 04/04/2022 - Tratado como prioridade pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), o projeto de lei que busca combater as fake news no País pode ser votado nos próximos dias, apesar da resistência de parlamentares ligados ao presidente Jair Bolsonaro (PL). Na semana passada, o relator, deputado Orlando Silva (PCdoB-SP), apresentou seu parecer final, mas o texto ainda pode ser modificado no plenário e é alvo de debate. Para o professor da USP Diogo Coutinho, especialista em direito econômico, se o Comitê Gestor da Internet (CGI), que deve atuar como órgão regulador, não for fortalecido, a aplicação da lei pode ser prejudicada.

“Não dá para largar essas empresas sob a supervisão de um CGI que não tem competências claramente definidas, que não tem poderes normativos, que não é uma agência reguladora, cujas funções são muitas e os funcionários nem salário têm. Eu acho que isso está frágil. Pode tornar a lei pouco efetiva”, diz Coutinho, em entrevista ao Broadcast Político.

O projeto de lei das fake news traz um conceito de “autorregulação regulada”, ou seja, prevê que as empresas terão de criar padrões próprios e regras de transparência para se adequar à legislação. Essa autorregulação, contudo, será regulada pelo CGI. “Além de criar insegurança jurídica e muitas dúvidas e incertezas, pode prejudicar o próprio mercado. Quando o mercado não entende direito quem vai ser o seu regulador, isso cria incerteza”, afirma o professor, sobre a falta de clareza na definição de como o CGI atuaria em caso de aprovação da lei.

Coutinho diz, ainda, que é importante criar uma jurisprudência consistente para a aplicação de multas a aplicativos de mensagens, plataformas digitais e redes sociais que descumpram a lei. Ele também não vê empecilho para a exigência de representação das empresas no País por meio da constituição de pessoa jurídica, o que afeta o Telegram.

Veja os principais trechos da entrevista:

Broadcast Político - Está claro no PL das fake news como funcionaria a autorregulação regulada?
Diogo Coutinho - A autorregulação regulada ocorreria sob supervisão do Comitê Gestor da Internet (CGI). Eu fico preocupado porque o CGI não é uma agência reguladora e o seu conselho, hoje, é composto por pessoas que são voluntárias, elas não recebem salário para atuar. Só que, do dia para a noite, se esse PL for aprovado, o CGI vai passar a ter uma função super importante na implementação dessa lei.

Broadcast Político - Então não está claro qual papel, exatamente, o CGI desempenharia?
Diogo Coutinho - Na minha leitura, o PL não dá conta de explicar direito quais serão as suas funções, os seus poderes, as suas prerrogativas, nem como o CGI vai atuar nessa função de monitoramento. E o fato de a lei ser silente a como no day after da sua promulgação o CGI vai atuar é preocupante. Se essa lei for aprovada e isso não for especificado, do dia para a noite, o CGI vai ter um monte de atribuições novas sem que a gente e ele próprio saibamos direito como ele vai fazer.

Broadcast Político - O que precisaria mudar no projeto com relação ao CGI?
Diogo Coutinho - No mínimo, vai ser muito importante regulamentar o papel do CGI nessa história de supervisão e, em especial, no que o PL está prevendo de autorregulação regulada. Quanto a esse ponto, é importante lembrar que a autorregulação regulada é um tipo de arranjo regulatório no qual o Poder Público deixa para os agentes privados uma certa margem de ação e permite que os agentes privados criem padrões para eles mesmos. Mas, como o próprio nome diz, essa autorregulação é regulada por alguém. Faz sentido, porque não existe hoje uma regulação que não tenha parâmetros públicos. O PL prevê que as empresas têm de se adequar à lei criando esse regime autorregulatório e, portanto, padrões de transparência, entre outras coisas. E vão criar uma instituição de autorregulação, na forma de associação.

Broadcast Político - A aplicação da lei pode ser prejudicada pela falta de força do CGI?
Diogo Coutinho - Não dá para largar essas empresas sob a supervisão de um CGI que não tem competências claramente definidas, que não tem poderes normativos, que não é uma agência reguladora, cujas funções são muitas e os funcionários nem salário têm. Eu acho que isso está frágil. Pode tornar a lei pouco efetiva. Além de criar insegurança jurídica e muitas dúvidas e incertezas, pode prejudicar o próprio mercado. Quando o mercado não entende direito quem vai ser o seu regulador, isso cria incerteza. É ruim para todo mundo.

Broadcast Político - O ideal seria ter outro órgão regulador?
Diogo Coutinho - Eu acho que o Brasil não discutiu suficientemente isso e pegou, não sei bem por qual razão, algo que já estava na prateleira. Não tem um regulador da internet no Brasil. No entanto, Alemanha, Inglaterra e Estados Unidos estão criando ou pensando seriamente em criar uma divisão de regulação de plataformas digitais. A tendência mundial é que plataformas digitais ganhem reguladores próprios. O que a lei das fake news está fazendo é escolher por exclusão o CGI. Mas é preciso fortalecê-lo como regulador. Talvez a lei do CGI tenha de ser revisitada.

Broadcast Político - O relator da proposta incluiu a obrigatoriedade de as empresas, como o Telegram, terem representação no País por meio da constituição de uma pessoa jurídica, com CNPJ. É razoável?
Diogo Coutinho - Eu não acho estapafúrdio que a lei preveja que empresas como o Telegram tenham sede no Brasil, constituída formalmente. Em princípio, empresas internacionais podem atuar no País e não obrigatoriamente ter sede constituída aqui. Isso não é uma regra geral. Mas eu não vejo empecilho a que uma lei federal votada pelo Legislativo, em circunstâncias específicas, consideradas de interesse público, obrigue determinadas empresas a ter sede no Brasil. O episódio que a gente viu do Telegram revela que o seu potencial de provocar transtorno numa eleição é tamanho, e a dificuldades das autoridades brasileiras de se comunicarem com o Telegram foi muito grande. Numa situação como essa, pode ser justificável. Não vejo empecilho jurídico.

Broadcast Político - A multa por descumprimento da lei é de até 10% do faturamento da empresa no País. Considera adequado?
Diogo Coutinho - É algo significativo, mas, tão importante quanto ter um número objetivo que sinalize qual é o tamanho da consequência de se infringir a lei, é ter uma aplicação consistente dessas multas. Se pode multar em até 10%, qual é o tipo de infração que chega a tanto? É preciso criar uma jurisprudência consistente, que escalona a aplicação da multa em função da gravidade do descumprimento da lei, algo previsível pelo mercado. Se a aplicação for errática, isso pode ser contraproducente. Até porque as empresas tendem a judicializar essas multas.

Contato: iander.porcella@estadao.com

Para saber mais sobre o Broadcast Político, entre em contato com comercial.ae@estadao.com
Para ver esta notícia sem o delay assine o Broadcast Político e veja todos os conteúdos em tempo real.

Copyright © 2024 - Todos os direitos reservados para o Grupo Estado.

As notícias e cotações deste site possuem delay de 15 minutos.
Termos de uso