Economia & Mercados
03/12/2021 13:29

Cena Monetária/Aldo Mendes: Diante de incertezas políticas e fiscais, tarefa do BC é hercúlea


Por Simone Cavalcanti

São Paulo, 01/12/2021 - Diante do nível de incertezas nos planos político e fiscal brasileiros, o trabalho do Banco Central no combate à inflação é hercúleo e sem a capacidade de oferecer um resultado no curto prazo. A avaliação é de Aldo Mendes, ex-diretor de política monetária do Banco Central e atual membro independente da Cielo e presidente do Conselho de Administração da Invepar. Para ele, a maior batalha da autoridade monetária será retomar o controle sobre as expectativas de prazo mais longo, que desancoraram e ameaçam seriamente a meta para além de 2022.

"O Banco Central precisa brigar fortemente para moderar expectativas de 2023 em diante e não jogar a toalha", frisa. "É preciso levar os agentes econômicos a acreditar que, apesar do estouro da meta, que já está contratado para este e para o próximo ano, há um horizonte de retomada da estabilidade de preços à frente, em 2023, 2024".

Para Mendes, o BC vai ter que continuar "carregando o piano" sozinho - sem ajuda da política fiscal e com as incertezas políticas - até 2023, quando então um novo governo lance mão de um plano para refundar a política econômica no País ou, se reeleito o atual, este reveja profundamente seu "modus operandi" e consiga reverter dramaticamente as expectativas dos agentes econômicos. Leia, a seguir, a entrevista:



Broadcast - O presidente do BC, Roberto Campos Neto, admitiu que a inflação está disseminada e que o trabalho da autoridade monetária será mais difícil. Qual cenário o senhor traça para a política monetária brasileira?

Aldo Mendes -
Concordo com o Roberto Campos. A autoridade monetária tem realmente um desafio à frente. Para mim, a maior batalha do BC será retomar o controle sobre as expectativas de prazo mais longo, que desancoraram e ameaçam seriamente a meta para além de 2022. E não será tarefa fácil, pois, por um lado, temos a inflação importada, fruto da desarticulação da oferta que ocorreu na esteira da crise da Covid. Há falta generalizada de insumos - onde incluo também o petróleo -, matérias-primas e bens finais na economia global. Enfim, um choque de oferta. E a política monetária pode muito pouco contra um choque desse tipo. Por outro lado, temos uma grande instabilidade política interna, a qual se traduz na incapacidade do Executivo em colocar em marcha um programa de governo, tendo o presidente da República transformado-se em refém do Congresso, não só pela falta de base partidária que o apoie sem pedir contraprestação em verbas, como, também, pela sua manifesta incapacidade política em liderar um processo que sinalize a disposição de vencer os obstáculos atuais - sejam eles de natureza econômica, social ou de saúde pública. Isso porque ficou refém do risco sempre iminente de sofrer um impeachment.

Broadcast - E o resultado disso?

Mendes -
O resultado tem sido o estrago fiscal a que se assiste, exemplificado pelo orçamento secreto, pela PEC dos precatórios e pelo furo no teto de gastos para viabilizar generosa distribuição de fatias orçamentárias no ano eleitoral de 2022. Ora, combater a inflação resultante dessas incertezas com política monetária, mormente diante de um cenário de redução da atividade, como é esperado para o ano que vem, torna realmente hercúlea a tarefa do Banco Central. No entanto, a autoridade monetária vai ter que agir para conter as expectativas, principalmente as de longo prazo, aumentando os juros ainda que sua efetividade para conter a inflação de curto prazo seja duvidosa. É preciso levar os agentes econômicos a acreditar que, apesar do estouro da meta, que já está contratado para este e para o próximo ano, há um horizonte de retomada da estabilidade de preços à frente, em 2023, 2024.

Broadcast - Quanto à inflação brasileira, com o que se preocupar?

Mendes -
As maiores preocupações são duas: a incapacidade da política monetária em oferecer resultados de curto prazo para o combate à inflação; e a desancoragem das expectativas de longo prazo. O Banco Central praticamente já admitiu que a inflação de 2022 vai romper a meta. Por isso, ele tem que brigar fortemente para moderar as expectativas de 2023 em diante e não jogar a toalha.

Broadcast - Em que medida o câmbio deve importar a inflação do mundo?

Mendes -
A importação da inflação já é uma realidade. O mundo vive um surto inflacionário devido ao choque negativo de oferta que se sucedeu ao final da última onda de Covid. Se estamos entrando numa nova onda, ainda não sabemos ao certo. A questão do câmbio, na minha visão, está muito mais ligada à descrença na política econômica brasileira. Quando os agentes estrangeiros examinam as condições do País e veem a armadilha em que caiu a política econômica, conduzida a reboque de interesses político-eleitorais - com a honrosa exceção do Banco Central -, com sério agravamento do quadro fiscal e enormes incertezas com relação ao crescimento e à estabilidade à frente, a confiança no real se desfaz e o câmbio tende a permanecer desvalorizado. Quadro que tende a se agravar à medida que EUA e Europa comecem a subir a suas taxas de juros.

Broadcast - O temor de uma não normalização das cadeias produtivas na Europa, com a nova disseminação do coronavírus, se sustenta?

Mendes -
Essa hoje me parece a pergunta do milhão. Ainda há muita incerteza sobre a severidade da nova cepa [ômicron]. Mas se de fato esta se provar impactante, é certo que a recuperação das cadeias produtivas não se sustentará. Autoridades ao redor do mundo, como o Federal Reserve [Fed], já sinalizam rever o prometido endurecimento monetário caso a nova onda da Covid se dissemine e se agrave.

Broadcast - O presidente do Fed, Jerome Powell, foi indicado para a recondução de seu mandato. Qual a leitura que se pode fazer sobre a política monetária nos Estados Unidos?

Mendes -
A recondução de Powell tira um pouco das incertezas que estão sobre a mesa, pois teremos continuidade. Mesmo no caso de agravamento mais severo da Covid, o presidente do Fed acenou com a possibilidade de um rever a elevação dos juros já incorporada nas expectativas dos agentes econômicos.

Broadcast - O Brasil foi um dos emergentes que iniciou o ciclo de alta primeiro. No que isso pode ajudar quando os EUA iniciarem o ciclo de aperto por lá?

Mendes -
Sem dúvida ajuda. A elevação de juros nos EUA, e mesmo na Europa, concorre para atração de capitais e fortalecimento do dólar e do euro perante outras moedas. Assim, precisamos realmente manter sob controle o "gap" entre a nossa moeda e as demais, sob pena de uma desvalorização do real ainda mais acentuada, causando mais inflação. E para isso, infelizmente, é preciso elevar os juros no Brasil. Ter começado antes permite que o movimento de aperto monetário seja feito a passos mais lentos, sem, contudo, perder de vista a taxa final a que se quer chegar.

Broadcast - O senhor vê um processo de estagflação para a economia brasileira em 2022?

Mendes -
Sim, infelizmente. Isso, na minha opinião, já está dado.

Broadcast - Como sair dessa armadilha?

Mendes -
Não vejo saída no curto prazo. Ano que vem teremos eleições e o governo já apontou que ajuste fiscal não conversa com suas pretensões eleitorais. Seria preciso refundar a política econômica no Brasil. Um choque de credibilidade seria fundamental com um plano de governo que mire equacionar os desafios orçamentários sem abandonar as parcelas mais carentes da população, reconquiste as expectativas de inflação para além de 2023, crie um clima de confiança para a retomada do investimento privado e diminua a pressão sobre o câmbio. Mas a condição sine qua non para isso é o choque de credibilidade. Um eventual novo governo a partir de 2023 talvez consiga implementar algo nesse sentido. Já na hipótese da reeleição do atual parece muito mais difícil a retomada da credibilidade.

Broadcast - Até lá, o BC "carrega sozinho o piano"?

Mendes -
O BC vai ter que continuar carregando o piano sozinho até 2023, quando então um novo governo lance mão de um plano para refundar a política econômica no País ou, se reeleito o atual, este reveja profundamente seu "modus operandi" e consiga reverter dramaticamente as expectativas dos agentes econômicos, sinalizando na direção de maior disciplina, previsibilidade, menos idas e vindas em suas decisões e maior comprometimento com a retomada dos investimentos.

Contato: simone.cavalcanti@estadao.com
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